quarta-feira, 13 de março de 2019

Sobre a mesa





Eu e minha amada saímos para jantar, na noite de ontem. Nos permitimos um cardápio simples, com carne de sol, manteiga de garrafa e mandioca. Arrisquei uma cerveja e ela ficou no refrigerante pois estava com a garganta sensível. Voltamos cedo, papeamos um pouco e... cama. Em um ano, provavelmente esqueceremos esse momento, tão comum e singelo que pareceu.

Há um ano, outro jantar jamais será esquecido. Ele não terminou. “Lembro o que cozinhava, afinal são 12 meses sem fazer o jantar. São 12 meses que minha companheira não está mais entre nós. São 12 meses que minha vida mudou. Não só a minha como a de todas nós. Mas a minha vida é uma outra vida que nunca quis ter”, a frase é de Mônica Benício, esposa de Marielle Franco que jamais provaria aquele prato.

A cena descrita em artigo publicado na Folha de S. Paulo demonstra o lado mais cruel dessa perseguição. O jantar que não houve e não haverá é o final do dia de todos os que trabalhamos, que ganhamos o pão com o suor do rosto. Mas precisamos poder trabalhar.

Há um ingrediente nesse desejo simples – o de jantar quando o dia acaba – que, para os aqueles que tem o povo como fronteira, é como o sal, a carne e a mandioca. Sem ele não cozinhamos o dia para nos fartar a noite. Sem ele não conseguimos agir para depois sentar e prosear. Nesse jantar faltou a liberdade. Sim é ela que dá sabor e sentido ao dia suado e lutado.

Quando alguém como Marielle morre, as bocas de fogão se apagam nos morros, onde a sua voz protegia e fazia diferença. Os pratos se esvaziam entre as minorias que podiam comer em paz enquanto ela estivesse atenta e pronta a denunciar seus opressores. Os garfos e facas retornam às gavetas, porque o dia não acabou e o jantar não será servido.

Aquele dia segue interminável por 365 esperas. A pergunta respondida pela metade, com prisões quase cinematográficas, é um segredo de mentira, pois todos sabemos da verdade e conhecemos aqueles que não querem que o jantar seja posto. Há um outro País, paralelo e poderoso, que sobe e desce o morro da Maré, percorre o Brasil e termina – pasme – na vizinhança do presidente.

Aqueles alcançados pela Polícia e pela Justiça nos últimos dias jantaram confortavelmente ao longo desses 12 meses de panelas vazias na casa de Mônica e Marielle. Eles não conhecem a fome porque dela se fartam. Jamais terão a sensação do bom cansaço, resultante das melhores lutas, covardes que são, atrás das suas armas.

No fundo, o que queremos é pouco, bem pouco. Tanto é que, enquanto temos, parece até que não faz diferença. Jantamos todos os dias sem pensar como o cheiro do refogado, o som das panelas e o narrar do dia por aqueles que amamos é tão valioso.

Ao redor da mesa vazia permanecem Mônicas e Clarices à espera da verdade, para que o jantar possa, enfim, voltar aos pratos, antes de uma boa e justa noite de sono.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Eu, a militante e o prédio de vidro



“Sempre achei esse prédio esquisito. Passava diariamente por ele. Tudo fechado, um cheiro horrível. Conheci muita gente de lá. O dono do hotel ao lado cansou de reclamar. O prédio tava torto, moço. Ele mandou carta pra todo mundo e ninguém fez nada...”

O desabafo que não pediu licença veio uma senhora de cabelos grisalhos, com os olhos cheios d’água diante do monte de entulho e fumaça em que se transformou o que os moradores dos prédios invadidos do centro de São Paulo chamavam de “prédio de vidro”.

Na madrugada do primeiro de maio de 2018, muita coisa pegou fogo junto com aquele edifício. Por mais precário e “esquisito” que fosse o lugar, ele carregava memórias, momentos e histórias de vida. Parte da minha história também desabou.

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No dia 11 de maio de 1994, pela primeira vez desde o final da ditadura militar, as tropas do Exército brasileiro tomavam as ruas do centro da Pauliceia cerrando trincheiras com carros blindados, rifles e lança foguetes.
O objetivo: invadir, dominar e conquistar o prédio da Superintendência da Polícia Federal na rua Antônio de Godói.

Os agentes federais iniciaram naquele ano o maior movimento grevista da história da instituição. O Brasil da moeda forte estava ávido por viajar para o exterior e gastar dólares em paridade com a  URV (unidade monetária de transição que antecedeu o Real).

Pouco importava para a classe média – hipócrita como sempre – que a paralisação dos policiais pudesse afetar as funções vitais daquele órgão do Executivo Federal. O problema era mesmo a emissão de passaportes. Itamar Franco não teve dúvidas e decretou a intervenção.

A noite foi tensa. Afinal, Exército e policiais estavam armados até os dentes e, se alguém exibisse algum sinal de reação, o final daquele circo poderia ser sangrento. Os jovens repórteres, como eu, estavam evidentemente tensos.
Mais tarde perceberíamos que os mais amedrontados eram aqueles pobres soldados de verde, “quase todos perdidos de armas na mão”, que jamais cogitaram viver pela Pátria ou mesmo lutar e morrer com ou sem razão.

No prédio ao lado, no Sindicato dos agentes, parte do equilíbrio mantido se deveu à liderança do presidente Lauro Trapp, por uma feliz coincidência um amigo de família e, a partir de agora, minha fonte nessa longa cobertura. Trapp, um democrata de verdade!

Um doce maluquinho autointitulado agente comunitário especial Esteves furava o bloqueio militar e trazia notícias engraçadas do prédio de vidro, simulando no seu delírio o papel de Relações Públicas dos policiais.

Me apoiei na figura mais do que competente do rei do jornalismo na madrugada, Carlos Maglio. O repórter da CBN conhecia como poucos a noite paulistana e seus segredos. Tratava (e era tratado) pelo nome pelos personagens mais soturnos do centro. 

Outra figura marcante era o porta-voz do Comando Militar do Sudeste, um oficial com nome improvável: Miguel Carlos Tatton Ferreira. Isso mesmo, coronel Tatton.

A mesa ladeada por duas bandeiras, uma brasileira e outra soviética, era o seu modo de demonstrar um certo espírito democrático mesmo como porta-voz de um momento tão ridiculamente autoritário.

Maglio não resistiu ao nome engraçado do coronel, e com um tapa nas costas do sujeito, saudou:

 - Tatton sua velha raposa....

No prédio de vidro passei meses acompanhando os detalhes das negociações entre  Governo agentes em busca da isonomia salarial com os policiais civis de Brasília, à época os mais bem pagos do Brasil.

Em um final de tarde, da janela do Sindicato observei os militares marchando em retirada. O major no comando acenou em despedida. Cheguei a noticiar o final da intervenção para a revolta da chefia de reportagem da rádio. Brasília não confirmava a notícia.

Meia hora depois, outra tropa invadiu novamente o prédio e a intervenção durou mais alguns dias. No jargão jornalístico, cometi uma “barrigada”. O que teria acontecido era simplesmente uma troca de guarda. Ninguém explicou, no entanto, porque trocar a guarda naquele horário, perto das 18h.

Mais tarde, o presidente da Federação dos agentes, Francisco Garisto, denunciou o que teria sido um momento de resistência e desobediência dos militares que não teriam concordado com a ordem presidencial de deixar a PF. Vivemos uma tentativa de golpe, segundo o agente...

Cultivar fontes, circular em lados distintos em um momento de confronto, lidar com informações divergentes durante uma greve, a euforia de um ano eleitoral e o plano econômico comemorado pela sociedade; esse conjunto caótico de fatos, fez de um jornalista iniciante um repórter.

Daquelas janelas da Antônio de Godói aprendi a enxergar a minha cidade e o meu país com maturidade e discernimento. Os tiras, soldados e delegados me ensinaram que ser e parecer eram coisas diferentes.

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O agora professor de jornalismo e a militante sem teto estavam ali abraçados diante dos escombros do prédio de vidro que cobriam a rua Antonio de Godói. Não deu pra segurar o choro. Não importa o significado do que estava no chão, pessoas viram parte da sua história soterrada.

Décadas depois, a mesma irresponsabilidade daquela intervenção se repete nas favelas cariocas. O mesmo descaso com o direito dos agentes dá lugar à invisibilidade de centenas de brasileiros que procuram um lugar pra viver.

Os Sindicatos, em pleno primeiro de maio, assistem direitos vilipendiados por um governo criminoso. O equilíbrio do velho Trapp, com a experiência da luta, dá lugar ao desespero daquela gente sem teto, e agora sem mais nada.

Firmando bem os olhos, enquanto o choro permitia, eu seria capaz de ver o agente Esteves correndo para levar perguntas e trazer notícias para a imprensa de plantão. Tentava retomar os rostos, mas a militante inconformada e em prantos, mantinha em bom tom sua indignação.

Nos despedimos com um forte abraço. Eu segui para a Cruz Vermelha, na tentativa de contribuir de algum modo para aliviar o sofrimento dos sobreviventes. Ela se juntou a eles, com palavras de carinho e consolo.

O ano de 2018 definitivamente chegou para que pensemos sobre o que restou dos nossos sonhos e esperanças. Para questionar o quanto, de fato, somos uma sociedade ou um aglomerado de grupos raivosos e preconceituosos que já criminalizam as vítimas desse desastre.

É preciso muita indignação e coragem para manter a esperança!!!!

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Alguém sabe onde é a boca???



A discussão sobre as exposições envolvendo erotismo e  nudez, seja no Sul ou em São Paulo, deixa claro um certo consenso sobre o fato de que o conteúdo em pauta seria impróprio para crianças – seja na apreciação das obras, seja na participação da garotada em performances. Estaríamos nós – sociedade brasileira – como que protegendo nossos pequenos do nu exposto, do sexo feito arte. Mesmo os que condenam a gritaria liderada pelos meninos do MBL (Movimento Brasil Livre) abrem parênteses para a ideia de que o assunto é coisa de gente grande.

Adianto que não faz muito sentido discutir se o que foi apresentado é arte ou não - como gente de monte que nunca entrou em um museu anda fazendo. Tô vendo a hora que alguém vai colocar o pênis do Adão de Michelangelo na mesa. Ou pior: questionar o poder erótico de Nossa Senhora do Leite. Seria a virgem apropriada à apreciação pública? Amamentar é arte?

O que faz sentido discutir é essa tal de “proteção” às “nossas” crianças. Já que não tenho compromisso com lado nenhum nessa história me aventuro a meter os dois pés na porteira da hipocrisia. Qual, exatamente qual, o problema que pode gerar para o desenvolvimento de uma criança uma pintura erótica ou aquele pobre peladão deitado no chão do MAM???

Você, meu caro leitor, de fato acredita que aquela garotinha que segurou o pé do artista nu, com sua mãe ao lado, perdeu um minuto de sono com o que viu? Ou pior: acha mesmo que aquela visão pode provocar, no futuro dos pequenos, um trauma ou bloqueio sexual diante do pênis mole do sujeito? O que há de erótico em um Cristo cheio de pés e braços? Ou nos desenhos quase infantis de gente transando com bichos?

Crianças são influenciáveis sim, claro. Mas não são imbecis. São expostas à erotização frequente em comerciais de televisão, novelinhas (rebeldes que o digam), modismos, jogos e revistas e nem por isso saem correndo em busca de sexo ou tornam-se pervertidas malucas. O tema aliás já foi bem mais difícil em outros tempos, não é mesmo?

Vivemos anos a fio com dona Xuxa em trajes mínimos e suas paquitas rebolando nas telas, entupindo a garotada com ofertas de brinquedos e amaciando a inteligência infantil com músicas idiotas. E tinha Angélica, Eliana, Mara e outras tantas, cada qual mais exposta e, que fique claro, todas de carne e osso, diariamente na sala de casa.

E tem a tal da Zoofilia definida como perversão que leva ao sexo com animais. Tudo por conta de algumas imagens toscas retratadas em um dos quadros da exposição patrocinada pelo Santander. Pois deixe que seu filhinho digite esse termo zoofilia  no Mr Google para ver o que aparece logo na primeira página: um show de imagens escatológicas de gente de verdade transando com bichos. Isso é arte? Pode?

Essa garotada que jamais passou na porta de um museu passa o dia perdida na internet povoada de pedófilos, zoófilos e outros ófilos que seus pais jamais imaginaram existir e, para os quais, o MBL convenientemente fecha os olhos. Afinal, bater em artista é bem mais legal do que enfrentar criminosos, não é mesmo?

Sem falar da telinha. Os filhos dos queixosos não assistem a novela das 9? Putaria e bandidagem nos morros cariocas em rede aberta, com direito a discussão no Faustão parecem liberadas para as inocentes criancinhas, desde que fiquem longe de museus e seus artistas contemporâneos contaminantes.

Sou pai e lidei com a questão em casa ao longo dos 17 anos da minha filha. Jamais tratamos a nudez com tintas moralistas e nem a arte como coisa certa ou errada. Acho que eu e a mãe da minha filha acertamos. Luísa cresceu em paz com o sexo e com a cultura – sem traumas!!!

É disso que se trata. Do que as crianças recebem em casa, na escola, dos amigos, enfim do seu conjunto de referências. Educar é um processo aberto para o mundo e suas coisas. O véu moralista sempre encobre o pior. Já a naturalidade desperta nas crianças as mais surpreendentes reações.

Uma cena, aliás, ilustra bem o assunto!

Estávamos eu e Luciana assistindo a novela enquanto Luísa, à época com uns quatro ou cinco anos, brincava com suas bonecas. De repente, Fábio Assunção enche Malu Mader de beijos que começavam nos pés e iam subindo libidinosamente pelas pernas da morena, para o nosso constrangimento.

Deveríamos mudar de canal? Ou seria melhor manter e distrair a pequena para não chamar a atenção?

Luísa então começa a gargalhar!!!!!

Eu e a mãe da criança nos olhamos sem entender aquela reação esquisita diante da cena tórrida. E perguntamos, lógico, qual o motivo da risada. Veio a resposta:

- Olha lá!!! Parece que ele não sabe onde é a boca!!!


Pois é... 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Respostas fáceis



A droga contemporânea mais poderosa é a ideia que vivemos num mundo fácil de resolver

Jamais senti-me tão isolado em pensamentos e opiniões. Chega a ser perturbador, por um lado mas, por outro, faz pensar, refletir. O fato é que nos tornamos criaturas discursivas e somos cobrados por posições, antes irrelevantes para nós mesmos e o mundo. Cobrados por coerência, escolha, direção. É um mundo cheio de palavras e vazio de ações. Cheio de certezas e vazio de bons questionamentos. Adoraria escolher lados, explicar o mundo em um parágrafo e estar certo sobre as coisas. Mas, nem sempre o caminho simples é aquele que leva a algum lugar.

Quando um Donald Trump torna-se presidente eleito da Nação que lidera o mundo ocidental, o bloco ao qual pertencemos, contrariando previsões e institutos de pesquisa, analistas e especialistas de toda ordem, resta a pergunta: por que? Como poderia ser esse o mesmo País com uma democracia inabalável sustentada por uma Constituição centenária; o cenário de avanços tecnológicos fantásticos; a Pátria que elegeu Obama por duas vezes????

Aí vem a resposta fácil: Nos EUA há alguns milhões de fascistas que pensam e agem como o próprio presidente eleito. Há uma maioria homofóbica, burra e mentirosa. Um contingente com mais de 40 milhões de criaturas preconceituosas que gostariam de mandar para o inferno o primeiro imigrante ou muçulmano que cruzar o seu caminho.

Quem dera fosse tão simples explicar o mundo dessa forma. Mas, não é. Não faz sentido que assim seja. Essa corrida conservadora, essa guinada à insanidade, tem raízes bem mais profundas do que o caminho simplista retratado anteriormente. Não fosse assim, o mesmo fenômeno não teria versões semelhantes em outras partes do mundo, em um processo de conservadorismo galopante.

A ideia de recolher as velas, olhar para o próprio umbigo, se fechar em copas (como diriam os antigos) é sempre retomada quando as perguntas ficam sem respostas. Quando as teorias deixam de solucionar problemas e transformam-se em mera retórica, o pobre bicho homem se apega ao que tem e lhe parece sólido – seus princípios, seu chão, sua referência maior.

Muita coisa deixou de fazer sentido nos últimos anos. Como disse Salman Rushdie - o poeta maldito do Islã - de 11 de setembro de 2001 para cá, o mundo trocou definitivamente a liberdade por segurança como valor maior. Em outras palavras, sentir-se longe de ameaças, bombas e aviões despencando do céu, é mais importante que discutir as razões e causas profundas que nos colocam nesse estado de medo.

Ao mesmo tempo, passamos a conviver em rede global, conectados por um tijolinho tolo, um grilo falante que não nos deixa em paz, ao alcance de toda a sorte de ignorância. Ao medo, respondemos rápido, com uma injeção lisérgica para provocar aquele estado de conforto da alma e satisfação dos instintos animais e básicos de defesa da espécie e do território.

Assaltantes surgem tombando em meio aos carros nas redes sociais com um mundo inteiro comemorando no silêncio discursivo do touch screen. Matar é eliminar o problema rápido. E o nosso Bolsonaro galopa em popularidade justificando a violência, defendendo torturadores, negando a história e reescrevendo tudo com tintas truculentas e preconceituosas.

Para os bandidos do colarinho branco, a receita é cana. Vê-los atrás das grades é a vingança social que tanto esperamos depois de anos de violência contra as contas públicas. Não importa o quanto vamos recuperar do que foi roubado, desde que eles sejam presos, ainda que só por alguns anos. A imagem das algemas e do camburão são um conforto, um alento.

E tem a tal da delação. De novo, não importa o que seja delatado nem como. Também não é necessário que a caguetagem se mantenha em sigilo até a sua comprovação. Vale abrir a torneira e expor, escancarar, antes que eles escapem!!!!! Vamos dançar sobre o aniquilamento da imagem alheia como canibais que comemoram a prisão do colonizador – agora refeição para a tribo. São todos ladrões mesmo... Que queimem lentamente sob o nosso canto de guerra.

Quando vejo tanta delação premiada fico pensando como dizer a uma criança que delatar não é bacana. Não é bonito. Como explicar que, se o guri for pego colando, deve sofrer as consequências do seu malfeito sem entregar o colega? Que lealdade é um valor importante? Que o delator é o pior dos bandidos porque entrega seus comparsas em benefício próprio?

Aí tentamos explicar olhando para antigos líderes. À direita dizem que estamos limpando o que restou de um projeto criminoso de poder. À esquerda garantem que vivemos um tempo de exceção, de sequestro da democracia, um golpe sem tanques. E ambos, sem inocentes nem algozes, pipocam entre delatores e delatados. Ambos disseram que tinham a cura e se revelaram, em boa medida, a própria doença.

Cada qual ao seu tempo, ao seu jeito, com o seu discurso, direita e esquerda, no Brasil e no mundo, falharam. 
Tropeçaram na tal da globalização que só fez descentralizar a miséria e concentrar a riqueza. Aí, quando os porões sacodem a poeira, quando a senzala balança as correntes, todos correm amedrontados.

E quanto maior o medo, mais simples as respostas. Tudo culpa dos black blocs, dos adolescentes que ocupam escolas, dos vagabundos que não querem trabalhar e ficam fazendo manifestações e greves. Ou, se preferir uma resposta à esquerda, tudo já era previsto com esse governo ilegítimo e seus comparsas. Agora eles vão suprimir direitos, esmagar investimentos sociais e aposentadorias.

Ok, ok. Mas qual seria mesmo o caminho? Nenhum dos lados tem a resposta. A direita enfiou o mundo em uma lógica liberal que destruiu o planeta e aprofundou diferenças. A esquerda faliu com seus ministérios da verdade, mamando em tetas que sempre jurou combater. Ambos viraram as costas para a educação. De mãos dadas, ainda que com discursos antagônicos, querem para si um pedaço do Estado, com seus cargos e vazamentos.

A França, próxima fronteira das respostas prontas, é um bom exemplo. Ninguém merece a violência. Nem franceses, nem muçulmanos. Mas a solução é simples – basta eleger uma versão Trump e erguer um muro.

A inteligência foi sistematicamente abandonada pelas ideologias. Posta de lado em nome da truculência. A droga contemporânea mais poderosa é a ideia que vivemos num mundo fácil de resolver. Que o homem pode preterir a liberdade em nome de uma segurança mentirosa, de sistemas políticos de fachada e da representatividade esculhambada.

Se os americanos elegeram Trump, aqui consagramos o Branco para prefeito e o Nulo para vice com uma grande Câmara de ausentes, já em primeiro turno. O trocadilho confere. Brancos pela não-escolha, mas também brancos os que restaram, com seus valores da Casa Grande (vide Crivella). Nulo pelo não das urnas mas também nulo pela preguiça de pensar, raciocinar e escolher. E ausentes todos, mais preocupados com as Olimpíadas.

A complexidade é chata e sonolenta, mas necessária. É preciso pensar no mundo de 2030 quando, segundo a ONU, mais de 90% da população mundial viverá em cidades, amontoadas em concreto armado.

É preciso pensar em tolerância, diálogo e convivência de verdade. Em um jeito de entender e lidar com a organização horizontal, em rede, sem a hierarquia tradicional, que possibilita – ao mesmo tempo – a existência do Estado Islâmico, o junho de 2013 e a Primavera Árabe. Se queremos fazer política é assim que será ou, simplesmente, não será!

Temos que nos preparar para uma sociedade que envelhece mais e mais e, cada vez mais cedo, se vê perdida nas angústias de uma vida sem direção nem propósito. Pensar em ter tempo para usufruir do que construímos e não viver para construir mais e mais.... Isso, antes que o Alzheimer nos mande esquecer tudo!

Hora de parar e pensar em um sistema educacional longe das “grades” curriculares que aprisionam o vazio, em carteiras que organizam a burrice, nos cardumes de peixinhos felizes nadando para boca dos tubarões – salve Brecht.

Pensar no futuro é pensar na água e no tempo como grandes ativos. É entender a mobilidade como um bem em risco e a própria cidade como a maior expressão da política, uma vez que tende a adensar problemas e pessoas em igual proporção.

Quero discutir o que podemos fazer por uma economia colaborativa e menos competitiva. Livre, sempre, mas que não tenha como meta comum o acúmulo que enterrou o mundo em nome de meia dúzia de fantasmas que chamamos de “investidores”.

Quero entender a razão de milhões de pessoas praticarem o suicídio coletivo com o crack. Quero estudar como lidar com os grandes fluxos migratórios sem fechar fronteiras. Quero saber como deter o aquecimento global. Quero mergulhar em problemas com a alma e não o com esse torcicolo ideológico antiquado.


Mas, caro leitor, se você prefere respostas prontas, siga em frente. Escolha seu partido, seu apelido (coxinha, petralha...), vote no seu Trump e seja feliz. Só não abra o olho!!! Permaneça na Matrix!!! Assim como está terá sempre o conforto do antagonista, do suposto contrário, como ameaça maior que a sua própria ignorância!!! 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Sclavi


Talvez esse ano queira nos dizer algo muito importante. Algo sobre a finitude.

De verdade, não encaro isso de um modo necessariamente difícil e doloroso, mas apenas como uma forma de medir o tempo.

Henri Cartier Bresson, Pelé do fotojornalismo, terminou seus dias desenhando paisagens. Ele dizia que passou a vida escravo de instantes, entre um clic e outro, e chegava a hora de escravizar o seu algoz, o tempo.

O último irmão do meu pai nos deixou e – como lembra bem meu primo Nelson – com ele se vai também nossa última referência de um jeito de ser importado de um lugarejo no norte da Itália. Um jeito Sclavi.

Sempre que algo nos move para além de nós – algo que vai da fome atávica à voz de volume desmedido ou mesmo ao jeito impulsivo de fazer e decidir – lembramos que nos unimos por esse sobrenome e seus altos e baixos.

Mas também é fato que somos muito diferentes. Ganhamos uma boa camada de verniz. Entendemos o lugar das sutilezas e das sofisticações. Somos pais mais carinhosos e presentes. E filhos mais atenciosos, sem dúvida.

Deles herdamos uma quase irresponsável ousadia empreendedora. Uma rebeldia que precisa ser domesticada a cada cretino se põe diante de nós juntando poder e falta de coerência (e como há cretinos no mundo...).

Perder meu pai e agora o último e mais jovem dos seus irmãos é um jeito que o mundo alerta para a necessidade de construir o novo, de encarar o futuro. Para nós, primos que carinhosamente nos unimos em mais uma perda, restará o olhar dos nossos filhos, daqui a alguns anos, recordando aquilo que para eles representamos.

De algum modo, a vida nos diz que precisamos preservar o que dos Sclavi recebemos, sem esquecer o nosso próprio legado. Presuntos, mortadelas e brigas à parte, o fato é que agora somos órfãos dessa referência, ao menos fisicamente neles representada.

Na velha bota, as novas gerações preservam a assinatura em bons vinhos na Azienda Agricola Sclavi Davide. Nos quadrinhos, Tiziano Sclavi é uma sumidade. Na gastronomia, tem Sclavi do Mediterrâneo até a terra do Tio Sam.

Com Miltinho, Cristina, Nelsinho e Gisleine por perto senti a cada abraço, a cada afago, esse toque de orfandade, mas, também, um forte senso de responsabilidade. Sou o caçula do grupo mas acho que essa italianada, onde estiver, há de olhar pra cá com orgulho!

Talvez não haja entre nós quem saque um microfone para cantar A volta do Boêmio no casamento de um dos nossos rebentos. Mas não lhes faltará o orgulho de ser o que são, a força para erguer e reerguer seu mundo, o apreço por inovar e inventar a própria história.

Vencer 2016 não significa deixar de lado a memória daqueles que perdemos,  nem as origens desse nome que carregamos. Cruzar esse ano tão especialmente difícil é também uma forma de parar o tempo e reafirmar o que dele queremos, para onde estamos seguindo e qual será a nossa herança.


Façamos como Cartier Bresson! Desenhemos de agora em diante nosso próprio tempo!

sexta-feira, 6 de setembro de 2013



Menino Brasil,

Parece que foi ontem! Você brincando de imperador, sobre o seu cavalo, de espada em punho, declarando a tal de “independência”.

Não parou, por aí! Dali a pouco veio a República!

Nossa, como o tempo passa, não é mesmo?

Nessa data, gostaria de comemorar seus feitos, suas vitórias e conquistas.

Mas, menino Brasil, escrevo porque sinto-me responsável pelo seu futuro. Acho mesmo que você precisa parar e refletir um pouco sobre tudo o que foi e o que será, de agora em diante.

Preciso ser honesto. Você tem se comportado como um adolescente egoísta. Despreza os mais jovens e não tem paciência com os mais velhos. Que feio, menino Brasil !!!!

Você já notou a quantidade de meninos e meninas perdidos pelas esquinas, consumidos pelo crack? Tem até índio entrando nessa. E você? Continuará aí parado?

Nossa indústria está pedindo socorro enquanto você se vangloria pelo sucesso na agricultura, pecuária e mineração!!! Pare de viver no passado !!!!

E os seus estudos, como andam? Não adianta disfarçar, porque te conheço bem!!!

Menino Brasil, volte para a escola. Estudar é importante. Veja seus primos asiáticos. Enquanto você brincava de inventar planos econômicos mirabolantes, eles estudavam. Hoje dá até vergonha de comparar seus boletins!

Menino Brasil, no ano que vem teremos eleições. Por favor, não faça bobagens. Nada de Jânio’s, Collor’s, coronéis de mentira, tampouco milicos de verdade. Espero que já tenha deixado essa turma de lado. Diga-me com quem andas e direi quem és, lembra?

Ahhh, cuidado com esse Barbosa !!! Quem é honesto de fato não precisa reafirmar isso aos quatro ventos. Não confio nesse cara !!!

Menino Brasil, já passei dos quarenta e tenho uma filha linda que sempre pergunta sobre você. Não pense que falo mal !!! Pelo contrário !!! Ela conhece bem suas terras, seus prodígios e belezas. Até para a Amazônia, já fomos!

Mas, meu menino, não dá pra esconder a verdade dessa nova geração, tanto mais depois da internet. Não gostaria de vê-la partindo para um lugar diferente mas, se as coisas continuarem assim, sei não...

E, por falar em filhos, você viu que beleza a garotada toda na rua esse ano?

Pois é! Eles se organizaram para dizer o quanto te amam, mas também para passar-lhe um pito em alto e bom tom!

Acorde, meu menino. Cresça! Pare com essas mentiras de criança e enfrente seus problemas com coragem. Todos estamos ao seu lado e precisamos de você!

Desculpe pela bronca, menino Brasil, mas é que eu sou mesmo assim, não desisto!!!

Acredite em você e conte comigo!



terça-feira, 12 de março de 2013

Eu, Ela, meu avô e Bispo




"A fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se vêem", São Paulo

 - Quero falar com o Bispo! - solicitou o garoto de 11 anos na recepção da Cúria Diocesana do ABC, no centro de Santo André.

- A quem devo anunciar?  – perguntou a senhora simpática da recepção.

- Diga que é Ronald Sclavi, chefe dos coroinhas da Paróquia Sagrado Coração de Jesus.

Diante da cena inusitada e da ousadia daquela criança, minutos depois, o Bispo abriu as portas do seu gabinete para mais uma lição de fé, razão e esperança.

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Missa, para mim, tinha cheiro e gosto de pipoca. Todos os domingos, eu, meu pai, minha mãe e irmãos seguíamos para a Igreja Sagrada Familia, na pequena São Caetano do Sul. O pipoqueiro já estava à porta no início da missa.  Na Liturgia da Palavra, o aroma de manteiga derretida invadia a casa do Senhor.

Pregava os olhos no folheto da missa e acompanhava tudo com atenção à espera do desfecho, da hora de degustar aquela delícia. Assim decorei as primeiras orações. O Credo estava no meio da missa. Depois a Oração pela Paz, até a oração final, pós-comunhão, Ave Maria e a benção! Pronto! Hora da pipoca!

O interesse gastronômico avançava e a curiosidade também. Que gosto teria a hóstia? De tanto infernizar minha mãe, dona Helen finalmente pediu ao padre uma amostra não consagrada para que eu pudesse provar.

Aos sete anos, fui para Santo André, onde minha relação com a religião mudou. Era o momento do 
catecismo e a Igreja começava a se apresentar como um ponto de encontro, de troca, alegre e divertido.

A catedral de São Caetano dava lugar a uma pequena capela de bairro, aconchegante, liderada pelo Padre Primo – italiano bondoso, simples, com uma especial vergonha de pedir  dinheiro aos fiéis para a construção do novo templo.

Cinthia era o nome da catequista, com cabelos longos, dona de um Fiat 147 equipado com um câmbio tão duro que a pobre tinha que usar as duas mãos para engatar a ré.  

Lembro-me como se fosse hoje, quando a moça detalhou a missa em seu sentido mais amplo. Fiquei impressionado e, ao mesmo tempo, envergonhado com a pressa que me fazia acompanhar o rito.

“Fazei isto em memória de mim”, pedia Cristo na consagração do vinho. Era a um pedido divino que estávamos atendendo naquele momento.

Outro trecho litúrgico que me emocionava dizia: “eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Mais uma referência ao Evangelho em uma passagem que narra o pedido de um soldado pela cura do seu servo doente.

O livreto de capa vermelha tinha perguntas e respostas que tinham de ser decoradas. Fui o primeiro aluno da sala nessa missão. Algumas perguntas e respostas guardo até hoje na memória.

Candidato a coroinha, meu interesse pelo rito foi crescendo a passos largos. Os equipamentos do altar: cálice, âmbula, patena, sanguíneo, pala, corporal e o sacrário – este improvisado em um velho cofre, revestido em dourado.

Tudo tinha um sentido, uma ordem, uma repetição de gestos marciais, transmitidos por gerações de religiosos, desde a última ceia.

Vestido com calça vinho, camisa branca e gravata de cetim, recebi minha primeira comunhão após confessar poucos e tolos pecados ao Padre Primo, pagos ao custo de cinco ave marias e três pai nossos. Atire a primeira pedra quem teve um melhor desempenho!

Ajudava todas as missas, colhia prendas para quermesses, me confessava semanalmente. Tornei-me uma espécie de menino de ouro da paróquia, pulando de casa em casa dos fiéis nas novenas de natal.

Em um almoço em minha casa, Padre Primo anunciou que estava de viagem marcada para a Itália e que um novo sacerdote ficaria no seu lugar, temporariamente.

Foi a última vez que vi aquele franciscano bonachão. Na semana seguinte, um jovem padre assumiria a paróquia. Vigoroso e alegre, o nome era Antonio dos Anjos Salvador (se não fosse padre, o que mais seria com esse nome?).

O novo padre encantou os fiéis. Rapidamente promoveu bingos e festas para finalizar a obra da igreja, com linhas modernas em concreto armado e vidro temperado.

Padre Salvador fundou o movimento de jovens com um nome engraçado: Jupam (Jovens Unidos por um amanhã melhor). Aderi rapidamente.

Em uma conversa com o padre, ainda não entronado vigário, falei do quanto a missa fazia sentido pra mim. Disse que a cada vez que o Cordeiro de Deus era anunciado meu coração batia forte. Enfim, pela primeira vez, admiti a possibilidade de uma vocação sacerdotal.

Nas visitas à Cúria, com seu fusquinha vermelho, acompanhava o futuro vigário, orgulhoso de levar ao chefe um candidato a padre.

Quando entrei pela primeira vez no gabinete do Bispo, aquele homem me recebeu com um sorriso especialmente generoso. Ao contrário do esperado, o Bispo não estimulou de pronto o que seria minha vocação, mas questionou o garoto sobre a verdade daquele impulso.

Se viesse a me tornar sacerdote, teria de deixar a família, abraçar o celibato, talvez seguindo para uma capela no interior, longe de tudo e todos. Citava o apóstolo Paulo, em sua pregação sobre fé e razão.

Que homem grande aquele Bispo!

Grande o suficiente para abrigar na Catedral de São Bernardo do Campo o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, desafiando a Ditadura e setores conservadores da Igreja.

O mesmo bispo, já cardeal, reedificaria a rádio nove de julho, exemplo do melhor foi feito na comunicação religiosa brasileira.

Para aquele menino, dialogar com seriedade com alguém dessa estatura era uma forma de pensar a vida, o futuro e a própria construção dos valores.

O exercício da dúvida, proposto pelo Bispo,  aos poucos, ganhava outras feições .

Daniela era a menina de cabelos encaracolados que frequentava as festas paroquiais e passeava pelo bairro na garupa de uma Garelli, pequena moto guiada pela sua irmã mais velha.

Ela tinha um sorriso doce, covinhas charmosas e me olhava de um jeito todo particular. Fiquei profundamente confuso. Achei que havia caído em pecado. Minha vocação estava em xeque.

A dúvida ganharia contorno de tragédia naquela manhã de 1982. Padre Salvador seria empossado como vigário da paróquia.  O próprio Bispo presidiria a cerimônia.  Pela primeira (e única) vez, seria o coroinha daquele homem tão importante na minha vida.

Realizei minha tarefa com todo o cuidado. Desde a arrumação do altar até cada toque do sino. Fui o primeiro a tomar a comunhão e acompanhei com redobrada atenção cada palavra do sermão.

Ao final da missa, enquanto todos estavam reunidos festejando na casa paroquial, meu irmão Marcos chegou com uma expressão assustada:

- O vô não está bem, temos que ir pra São Caetano!

Imediatamente, segui com ele no Corcel II verde, dirigido por Valter, o mais velho dos três. Ao entrar na avenida Goiás, com Miltom Nascimento cantando no rádio, recebi a notícia.

Também a caminho da igreja, como fazia todos os domingos, Vô João sofreu um enfarte fulminante e nos deixou.

Sim, naquela mesma manhã enquanto o futuro cardeal erguia o cálice para minha emoção, meu avô – referência de vida, homem elegante e preocupado com tudo e todos – partia para sempre.

Toda a minha convicção religiosa caía por terra. Fé e razão entraram em um choque que a minha cabeça e meu coração não estavam preparados pra suportar.

Duas semanas se passaram e tudo parecia complicado, confuso.

No auge da crise, só uma pessoa poderia acalentar-me a alma. Era aquele homem que falava sobre Paulo e questionava a minha vocação a quem eu deveria procurar.

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Dom Claudio Hummes me recebeu com o mesmo sorriso e voz potente.

- Meu filho, a que devo a honra da sua visita? – perguntou.

- Bispo, o senhor poderia me ouvir em confissão? – indaguei, sem dizer bom dia.

Respeitosamente, ele iniciou o ritual, uma espécie de código que me fez escancarar o coração sobre aquela mesa de madeira maciça.

- Estou confuso sobre a minha fé, minha vocação, sobre tudo... Acredito em Deus, claro, mas não consigo entender meu coração. Perdi meu avô e gosto dessa menina.  Não sei o que fazer.

Dom Claudio fez várias perguntas para entender melhor a história. Respondi a todas com muita verdade, aos soluços.

Por fim, o bispo concluiu:

- Filho, há várias maneiras de servir a Deus. Você não precisa tornar-se um sacerdote como eu. Apenas conserve em seu coração o sentimento que está por trás da tristeza com a morte do seu avô e do encantamento por Daniela: o amor! Seja um bom pai, um bom profissional, um bom marido e Deus estará contigo, sempre!

A confissão terminou com uma benção e um presente, ao invés da penitência. Ganhei um pequeno Evangelho com uma linda dedicatória na contracapa. Saí da Cúria com a alma leve e um mundo inteiro pela frente.

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Aquela foi minha última missa como coroinha. Eu e Daniela namoramos até minha mudança para São Paulo, meses depois.  Falei com ela pela última vez há mais de 10 anos.

Padre Primo nos deixou e padre Salvador é meu amigo no Facebook.

Sou pai, marido e profissional. Desempenho cada uma dessas funções com dedicação, amor e vocação. Ainda frequento a missa e me emociono com a Liturgia.

O bispo foi nomeado Cardeal e segue o seu caminho como um dos mais influentes religiosos brasileiros.

Hoje, aos 78 anos, Dom Claudio exercita sua fé, sua razão e suas dúvidas na eleição que escolherá o sucessor de Bento XVI. Ele mesmo pode ser eleito.

O homem que me ouviu com tanta generosidade é a prova viva que o equilíbrio e o bom senso, caminham juntos com a fé.

Quando a fumaça branca anunciar o novo Pontífice, o cardeal terá deixado mais uma marca na história da Igreja, no segredo do Conclave. Com certeza, a mesma marca de sabedoria que imprimiu na minha vida, no segredo da confissão.