quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Luísa, nossa escultura



Cheguei em casa por volta das 11h30, naquele sábado, após uma maratona do mestrado, às voltas de investigar uma tal de infografia, entre teorias semióticas e metodologias complicadas. Estudava um certo “alfabetismo visual”, tentando compreender a linguagem que, hoje sei, só faz sentido quando o coração está no bico da pena.

Luciana estava na cozinha preparando algo para o almoço. Linda, Luciana, sempre linda. A voz mansa, o sorriso perfeito....Me encantei por ela na sala de aula. Professor inspirado, notei a moça de cabelos encaracolados logo nos primeiros dias de 1996. Ela vestia uma camisa  com estampa de oncinha e usava óculos de grau – adoro óculos. Eles protegem a beleza como uma cortina transparente.... Quando não estão lá, a luminosidade explode.

Naquela manhã, minha esposa estava especialmente feliz e não economizava sorrisos. Havia um brilho secreto nos seus olhos claros que remetiam ao nosso primeiro beijo no alto da megalópole, ao som de um bom piano...

Deixamos uma porção de lulas que nada combinava com vinho tinto de segunda  emborrachar sobre a mesa... Por mais de 10 anos, lembramos aquela noite.

Outras noites lindas vieram e um tema era freqüente: a continuidade. Sim, éramos jovens e deliciosamente sonhadores. Queríamos nosso canto, nossa história, nossa vida.

Namoramos pouco... Um ano, um mês e nove dias... Tempo suficiente para esboçar nossas primeiras telas, ainda com traços de carvão, rabiscando a vida, como se fôssemos capazes de desenhar o futuro.

Jornalistas que somos, começamos pelas letras. Surgiu um “L”, depois o “U” . Um estranho e mágico consenso  deu forma à palavra  Luísa, assim com “s” e acento no “I”.

Desenhamos seus cabelos, esculpimos seu rosto, iluminamos seus olhos... Nada nesse mundo foi criado com tanto zelo, tanto amor e tanto carinho. Nenhum desenho era tão real mesmo saindo das mãos de artistas amadores que éramos.

Naquela manhã de sábado, os esboços da nossa vida estavam quase todos prontos. Neles cabiam cenas de jantares deliciosamente longos, perfis de amigos eternos e rabiscos de viagens que tinham o oceano ao fundo.

Na mesa da sala, um envelope branco, com uma folha escrita com números e letras pequenas estava a minha espera. Cheguei esbaforido e olhei superficialmente. Não entendi muito bem... A ficha demorou a cair... Eram números de partículas com um referencial.

Luciana me induziu ao erro dizendo que não seria daquela vez. Li, reli e... EPA!!!!

Faltavam naquele papel os cabelos ruivos, olhos claros e o sorriso aberto. Ali também não estavam as manchas de noites acordadas, borrões de preocupações, medos e anseios.

Não havia no desenho das letras o movimento engraçado dos bracinhos abrindo de repente. Não havia nada. Mas, não importa... Luísa saltava do papel para as nossas vidas como o projeto de uma grande escultura.

Tive em minhas mãos um desenho de Amilcar de Castro para uma pulseira de prata que a joalheira Beth Loeb desenvolveu. Eram cartolinas enormes, com cálculos e rabiscos. Não importava para o mestre o tamanho de sua criação, mas sim a grandiosidade da idéia. Pulseiras delicadas ou esculturas gigantes brotavam da mesma forma.

Luísas tem um tom concretista. São grandes, fortes e imponentes. Não passam despercebidas.

Desde a Luísa de Tom Jobim, como um brilhante que partindo a luz explode em sete cores, passando por outras Luísas históricas que tive a honra de conhecer, todas enfrentam as três dimensões com muita coragem.

Luiza Eluf, promotora de aço que catalogou com propriedade os crimes contra mulheres, discursou para os meus alunos em uma noite inspirada.

Luiza Erundina, primeira prefeita que enfrentou a São Paulo de homens pouco educados e políticos corruptos, tive a honra de entrevistar em momentos críticos. Monumento de honestidade e coragem!

Luísas são assim, com S ou com Z, não vieram ao mundo para pouco. São esculturas perenes que fazem e contam a sua história sem medo do metal que Amilcar de Castro retorceu e do brilhante que Tom Jobim converteu em poesia.

Naquela manhã, era minha Luísa que se anunciava. Minha escultura  que, contra a luz, reflete tons de rosa e carmim.

Ao metal corajoso que forja o seu espírito, acrescentamos cores e contornos. Nas faces, arredondamos bochechas fartas com massa de bondade e verniz de alegria.

Desfiamos fios de ouro para recobrir a obra em alto estilo. O olhar, iluminamos como o céu que só Cézanne soube pintar, recoberto com resina forte de generosidade e compreensão.

O coração, esse sim, elemento crucial da escultura, eu e Luciana moldamos em dois tempos. Preenchi cada ventrículo com o amor pelos mais fracos e esse espírito de herói que todo jornalista carrega em sua alma.

A mãe deu o acabamento associando a ternura, a fragilidade toda feminina, a atenção com os mais velhos e a capacidade de chorar até em casamento errado.

Escondido, numa noite de luar, acrescentei  àquele coração o amor pelos animais que a mãe sempre quis distantes da sua casa.

Nossa escultura teve várias fases. Algumas mais arredondadas, outras pontiagudas e doloridas, como a suspeita de meningite aos primeiros dias de vida.

Hoje, nós, pretensos artistas, assistimos ao mundo acrescentar cores e tons à nossa obra. Dolorido, a cada dia, perder a autoria de algo tão lindo e fascinante.

Por outro lado, como obra aberta que somos, nos orgulhamos dos contornos que a vida acrescenta aos nossos traços.

Amanhã nossa escultura ganhará títulos e prêmios, honras e diplomas. O nome Luísa pode ser precedido de termos como doutora, engenheira, veterinária,  professora ou até – que Deus a livre – jornalista.

Mas apenas quando a criatura esculpir sua própria obra, compreenderá que nada nesse mundo é mais forte que o metal que a forjou: o amor!

12 comentários:

  1. Uau, texto lindo, emocionante!
    Acredito que gerar um filho é um troço que não dá pra explicar e nem entender antes de
    acontecer, mesmo.
    No entanto, aqui do outro lado da tela senti tamanha intensidade que tudo isso significa
    para você!
    Ronald, amigo querido, vc já deve ter lido por aí que quando nasce um filho, também nasce um pai e uma mãe. Isso quer dizer que os pais de um filho perfeito não deixaram um manual escrito com o passo a passo para um final feliz.
    Mas esse seu carinho, amor e cuidado com a Luísa é emocionante, um verdadeiro exemplo, parabéns.
    Consigo daqui, sentir e imaginar suas duvidas, suas ansiedades e seus medos, que diga-se de passagem, você e a Luciana se superaram.

    ResponderExcluir
  2. Ronald, sua filha deve ter muito orgulho do amor que o pai dela tem por ela.

    Palavras maravilhosas que me levaram a sentir o coração bater apressado ao sentir um pouco da emoção de vocês.

    Conheço sua obra de arte e ela é realmente linda.

    Parabéns aos criadores!

    Sueli Pegoraro

    ResponderExcluir
  3. Nossa, que texto mais lindo......conseguiu expressar em palavras, sentimentos. Parabéns!! Bjs

    ResponderExcluir
  4. Ana's e Sueli, muito obrigado pelo carinho... beijos

    ResponderExcluir
  5. Nossa, realmente um texto maravilhoso Ro! A Luisa e assim tão linda, por dentro e por fora, por ter pais tão maravilhosos como vc e a Lu, que souberam e sabem a conduzir da melhor forma, desde a sua criação, como vc escreve! Me emocionei, de verdade! Gde bjo saudades!

    ResponderExcluir
  6. Ronald, a Luísa é a garota mais linda, mais doce e mais inteligente que já conheci! parabéns a vc e a Luciana por terem forjado uma escultura tão linda!

    ResponderExcluir
  7. Sem palavras... emocionada com tanta ternura e amor.. Lu

    ResponderExcluir
  8. Fabiana e Lu's, obrigado... vcs acompanham essa obra de perto.. bjs

    ResponderExcluir
  9. O nó na garganta não me permite dizer uma só palavra.... beijo imenso! Sil

    ResponderExcluir
  10. Ei, esse horário aí tá errado... hehehe
    São 19:38
    arruma ae!
    Sil

    ResponderExcluir
  11. Amei!!! Me emocionou muito!!! Parabéns!!!

    ResponderExcluir