terça-feira, 12 de março de 2013

Eu, Ela, meu avô e Bispo




"A fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se vêem", São Paulo

 - Quero falar com o Bispo! - solicitou o garoto de 11 anos na recepção da Cúria Diocesana do ABC, no centro de Santo André.

- A quem devo anunciar?  – perguntou a senhora simpática da recepção.

- Diga que é Ronald Sclavi, chefe dos coroinhas da Paróquia Sagrado Coração de Jesus.

Diante da cena inusitada e da ousadia daquela criança, minutos depois, o Bispo abriu as portas do seu gabinete para mais uma lição de fé, razão e esperança.

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Missa, para mim, tinha cheiro e gosto de pipoca. Todos os domingos, eu, meu pai, minha mãe e irmãos seguíamos para a Igreja Sagrada Familia, na pequena São Caetano do Sul. O pipoqueiro já estava à porta no início da missa.  Na Liturgia da Palavra, o aroma de manteiga derretida invadia a casa do Senhor.

Pregava os olhos no folheto da missa e acompanhava tudo com atenção à espera do desfecho, da hora de degustar aquela delícia. Assim decorei as primeiras orações. O Credo estava no meio da missa. Depois a Oração pela Paz, até a oração final, pós-comunhão, Ave Maria e a benção! Pronto! Hora da pipoca!

O interesse gastronômico avançava e a curiosidade também. Que gosto teria a hóstia? De tanto infernizar minha mãe, dona Helen finalmente pediu ao padre uma amostra não consagrada para que eu pudesse provar.

Aos sete anos, fui para Santo André, onde minha relação com a religião mudou. Era o momento do 
catecismo e a Igreja começava a se apresentar como um ponto de encontro, de troca, alegre e divertido.

A catedral de São Caetano dava lugar a uma pequena capela de bairro, aconchegante, liderada pelo Padre Primo – italiano bondoso, simples, com uma especial vergonha de pedir  dinheiro aos fiéis para a construção do novo templo.

Cinthia era o nome da catequista, com cabelos longos, dona de um Fiat 147 equipado com um câmbio tão duro que a pobre tinha que usar as duas mãos para engatar a ré.  

Lembro-me como se fosse hoje, quando a moça detalhou a missa em seu sentido mais amplo. Fiquei impressionado e, ao mesmo tempo, envergonhado com a pressa que me fazia acompanhar o rito.

“Fazei isto em memória de mim”, pedia Cristo na consagração do vinho. Era a um pedido divino que estávamos atendendo naquele momento.

Outro trecho litúrgico que me emocionava dizia: “eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Mais uma referência ao Evangelho em uma passagem que narra o pedido de um soldado pela cura do seu servo doente.

O livreto de capa vermelha tinha perguntas e respostas que tinham de ser decoradas. Fui o primeiro aluno da sala nessa missão. Algumas perguntas e respostas guardo até hoje na memória.

Candidato a coroinha, meu interesse pelo rito foi crescendo a passos largos. Os equipamentos do altar: cálice, âmbula, patena, sanguíneo, pala, corporal e o sacrário – este improvisado em um velho cofre, revestido em dourado.

Tudo tinha um sentido, uma ordem, uma repetição de gestos marciais, transmitidos por gerações de religiosos, desde a última ceia.

Vestido com calça vinho, camisa branca e gravata de cetim, recebi minha primeira comunhão após confessar poucos e tolos pecados ao Padre Primo, pagos ao custo de cinco ave marias e três pai nossos. Atire a primeira pedra quem teve um melhor desempenho!

Ajudava todas as missas, colhia prendas para quermesses, me confessava semanalmente. Tornei-me uma espécie de menino de ouro da paróquia, pulando de casa em casa dos fiéis nas novenas de natal.

Em um almoço em minha casa, Padre Primo anunciou que estava de viagem marcada para a Itália e que um novo sacerdote ficaria no seu lugar, temporariamente.

Foi a última vez que vi aquele franciscano bonachão. Na semana seguinte, um jovem padre assumiria a paróquia. Vigoroso e alegre, o nome era Antonio dos Anjos Salvador (se não fosse padre, o que mais seria com esse nome?).

O novo padre encantou os fiéis. Rapidamente promoveu bingos e festas para finalizar a obra da igreja, com linhas modernas em concreto armado e vidro temperado.

Padre Salvador fundou o movimento de jovens com um nome engraçado: Jupam (Jovens Unidos por um amanhã melhor). Aderi rapidamente.

Em uma conversa com o padre, ainda não entronado vigário, falei do quanto a missa fazia sentido pra mim. Disse que a cada vez que o Cordeiro de Deus era anunciado meu coração batia forte. Enfim, pela primeira vez, admiti a possibilidade de uma vocação sacerdotal.

Nas visitas à Cúria, com seu fusquinha vermelho, acompanhava o futuro vigário, orgulhoso de levar ao chefe um candidato a padre.

Quando entrei pela primeira vez no gabinete do Bispo, aquele homem me recebeu com um sorriso especialmente generoso. Ao contrário do esperado, o Bispo não estimulou de pronto o que seria minha vocação, mas questionou o garoto sobre a verdade daquele impulso.

Se viesse a me tornar sacerdote, teria de deixar a família, abraçar o celibato, talvez seguindo para uma capela no interior, longe de tudo e todos. Citava o apóstolo Paulo, em sua pregação sobre fé e razão.

Que homem grande aquele Bispo!

Grande o suficiente para abrigar na Catedral de São Bernardo do Campo o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, desafiando a Ditadura e setores conservadores da Igreja.

O mesmo bispo, já cardeal, reedificaria a rádio nove de julho, exemplo do melhor foi feito na comunicação religiosa brasileira.

Para aquele menino, dialogar com seriedade com alguém dessa estatura era uma forma de pensar a vida, o futuro e a própria construção dos valores.

O exercício da dúvida, proposto pelo Bispo,  aos poucos, ganhava outras feições .

Daniela era a menina de cabelos encaracolados que frequentava as festas paroquiais e passeava pelo bairro na garupa de uma Garelli, pequena moto guiada pela sua irmã mais velha.

Ela tinha um sorriso doce, covinhas charmosas e me olhava de um jeito todo particular. Fiquei profundamente confuso. Achei que havia caído em pecado. Minha vocação estava em xeque.

A dúvida ganharia contorno de tragédia naquela manhã de 1982. Padre Salvador seria empossado como vigário da paróquia.  O próprio Bispo presidiria a cerimônia.  Pela primeira (e única) vez, seria o coroinha daquele homem tão importante na minha vida.

Realizei minha tarefa com todo o cuidado. Desde a arrumação do altar até cada toque do sino. Fui o primeiro a tomar a comunhão e acompanhei com redobrada atenção cada palavra do sermão.

Ao final da missa, enquanto todos estavam reunidos festejando na casa paroquial, meu irmão Marcos chegou com uma expressão assustada:

- O vô não está bem, temos que ir pra São Caetano!

Imediatamente, segui com ele no Corcel II verde, dirigido por Valter, o mais velho dos três. Ao entrar na avenida Goiás, com Miltom Nascimento cantando no rádio, recebi a notícia.

Também a caminho da igreja, como fazia todos os domingos, Vô João sofreu um enfarte fulminante e nos deixou.

Sim, naquela mesma manhã enquanto o futuro cardeal erguia o cálice para minha emoção, meu avô – referência de vida, homem elegante e preocupado com tudo e todos – partia para sempre.

Toda a minha convicção religiosa caía por terra. Fé e razão entraram em um choque que a minha cabeça e meu coração não estavam preparados pra suportar.

Duas semanas se passaram e tudo parecia complicado, confuso.

No auge da crise, só uma pessoa poderia acalentar-me a alma. Era aquele homem que falava sobre Paulo e questionava a minha vocação a quem eu deveria procurar.

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Dom Claudio Hummes me recebeu com o mesmo sorriso e voz potente.

- Meu filho, a que devo a honra da sua visita? – perguntou.

- Bispo, o senhor poderia me ouvir em confissão? – indaguei, sem dizer bom dia.

Respeitosamente, ele iniciou o ritual, uma espécie de código que me fez escancarar o coração sobre aquela mesa de madeira maciça.

- Estou confuso sobre a minha fé, minha vocação, sobre tudo... Acredito em Deus, claro, mas não consigo entender meu coração. Perdi meu avô e gosto dessa menina.  Não sei o que fazer.

Dom Claudio fez várias perguntas para entender melhor a história. Respondi a todas com muita verdade, aos soluços.

Por fim, o bispo concluiu:

- Filho, há várias maneiras de servir a Deus. Você não precisa tornar-se um sacerdote como eu. Apenas conserve em seu coração o sentimento que está por trás da tristeza com a morte do seu avô e do encantamento por Daniela: o amor! Seja um bom pai, um bom profissional, um bom marido e Deus estará contigo, sempre!

A confissão terminou com uma benção e um presente, ao invés da penitência. Ganhei um pequeno Evangelho com uma linda dedicatória na contracapa. Saí da Cúria com a alma leve e um mundo inteiro pela frente.

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Aquela foi minha última missa como coroinha. Eu e Daniela namoramos até minha mudança para São Paulo, meses depois.  Falei com ela pela última vez há mais de 10 anos.

Padre Primo nos deixou e padre Salvador é meu amigo no Facebook.

Sou pai, marido e profissional. Desempenho cada uma dessas funções com dedicação, amor e vocação. Ainda frequento a missa e me emociono com a Liturgia.

O bispo foi nomeado Cardeal e segue o seu caminho como um dos mais influentes religiosos brasileiros.

Hoje, aos 78 anos, Dom Claudio exercita sua fé, sua razão e suas dúvidas na eleição que escolherá o sucessor de Bento XVI. Ele mesmo pode ser eleito.

O homem que me ouviu com tanta generosidade é a prova viva que o equilíbrio e o bom senso, caminham juntos com a fé.

Quando a fumaça branca anunciar o novo Pontífice, o cardeal terá deixado mais uma marca na história da Igreja, no segredo do Conclave. Com certeza, a mesma marca de sabedoria que imprimiu na minha vida, no segredo da confissão.

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